Todos os dias me sujo de coisas eternas

(um verso roubado a Luana Carvalho)

©Pedro Santasmarinas

©Pedro Santasmarinas

 
 

Uma rua. Não, não é assim. Uma casa. Não, uma rua. Sim é isso. Não, não é assim.
Várias ruas e várias casas. Uma cidade inteira. E os mapas, os atalhos, as vielas, as avenidas, os becos. E as escadas, os passeios para solteiros, a carreira de autocarro suprimida, o homem que escarra para o chão, as travessas e a velha que se atravessa sem olhar. 
As Taipas, que Rosário!, tantos passos, Manuel. Mas é Boa-a-vista, e Belo-o-monte. Como quem segue para as Flores. São rosas, meu senhor. Santa, a Catarina? Não é essa, a outra. Das Carmelitas? Mas nem de França veio a avenida, nem de Paris as Galerias. 
E eu - eu não, ela (que não é a santa nem a das rosas). E ela - que não pertence bem a um tempo porque não tem tempo a perder e já perdeu tudo o que tinha - ela, ao passar por aqui, suja-se todos os dias de coisas eternas, porque leu este verso num poema de outra mulher, e mata o tempo a roubar histórias dos outros. Para não matar outra coisa. 

 
 

Ficha artística

Criação - Sara Barros Leitão
Assistência à criação - Maria Inês Peixoto

Apresentações

12 de julho 2019, 21h30
Casa d’Artes do Bonfim - ESTREIA

24 de agosto 2019, 21h30
Casa d’Artes do Bonfim

Espectáculo disponível para digressão.

 

Imprensa

 

Fotografias de cena

©Pedro Santasmarinas

 

teaser

 

Diário de bordo

©Dinis Santos

©Dinis Santos

25 de agosto de 2019

Ontem ganhou o Porto e ganhei eu.

Ainda me sinto absolutamente comovida com a enorme quantidade de espectadores corajosos, que se arriscaram a ir para a Avenida Fernão de Magalhães, em dia de jogo, numa noite fria de um agosto estranho. Que vieram desde Barcelos, Espinho, Aveiro, Famalicão, e que começaram a chegar pelas 16h30 para conseguirem um bilhete. Ainda estou anestesiada por ter visto que foram tantos os bravos e bravas que já não conseguiram lugar na limitadíssima lotação do espectáculo, e que, mesmo assim, esperaram (alguns mais do que uma hora), para ver a parte inicial do lado de fora do pequeno muro que delimita a casa. Ainda estou meia sem palavras para todos e todas as que esperaram, cá fora, que o espectáculo terminasse, para poderem ver a exposição final e perguntar quando haverá nova data. E ainda fico com o coração mais acelerado ao pensar que as cinquenta pessoas, a quem contei as histórias sobre as quais tenho estado a trabalhar, eram compostas pelas pessoas que na estreia ficaram de fora, e pelas que chegaram tremendamente cedo, entregando-me várias horas do seu dia, à espera, para ver este projecto.

Ontem ganhou o Porto, mas não tenho dúvidas que mais do que o Porto, ganhei eu.

Como, para além de tudo isto, estou mesmo cansada e a segunda-feira é já depois do sono, gostava apenas de agradecer. Mas daqueles agradecimentos tão grandes que às vezes dá vergonha alheia para quem me lê. Daqueles que só fazem sentido para os outros se eles sentirem empatia por ti, caso contrário, até dá vontade de rebolar os olhos. Daqueles que quase me levam a fazer um hashtag a dizer "blessed". Mas também daqueles mesmo sinceros, tão olhos nos olhos que às vezes até é difícil que a outra pessoa segure o olhar. Sim. Desses, em que nos entregamos por completo.
Irei, de certo, apresentar o espectáculo novamente, pois não consigo parar de pensar que o devo a todos os que, infelizmente, queriam mas não conseguiram assistir. Darei novidades com as datas e o local o mais breve possível.

 
©Júlio Moreira

©Júlio Moreira

24 de agosto de 2019

Ontem fiz um ensaio geral e convidei alguns amigos para assistir. Isto de trabalhar praticamente sozinha é difícil e exige muita disciplina. Mas, sobretudo, é difícil ensaiar sem ninguém a ver, ou seja, sem o encenador. É que o teatro precisa mesmo sempre de alguém a receber o que estamos a dar, e a entregar de volta, para nos dar fôlego para continuar. O ensaio não foi brilhante e fiquei até desiludida comigo. Corri demasiado em partes que precisavam de respiração, não encontrei subtileza no que dizia, e parecia que estava sempre a ver-me de fora, parecia-me tudo cheio de forma.

Apesar disso, como o espectáculo começa no exterior, há sempre todo o caos da rua com que tenho que lidar e que me obriga a estar ainda mais comprometida com o tom certo. Durante o ensaio de ontem, como acontece sempre, há transeuntes que ficam a assistir, e também a comentar, a bater palmas... depois o espectáculo encaminha-se para dentro de uma casa e, normalmente, eles vão embora e eu continuo, durante mais uma hora. Ontem, um senhor com 86 anos começou a aproximar-se lentamente. Ficou a ouvir, junto com outros espectadores-espontâneos, depois passou o portão, juntou-se aos espectadores-amigos, e quando passámos para dentro de casa, ele entrou também e ficou a assistir a todo o ensaio geral, apenas com sete pessoas. Durante o ensaio ele ia interrompendo, às vezes com informações sobre o que eu estava a contar, e na maioria das vezes dizia "desculpe, não percebi". Eu repetia a frase ou a palavra mais alto e ele respondia "obrigado!". No fim, mal disse a última frase, ele percebeu claramente que tinha acabado e nem me deixou terminar a respiração: começou a perguntar qual era a história do jardim Rainha D. Amélia. Disse-lhe que tinha uma exposição no primeiro andar com essa informação e que podia ir lá com ele para tirarmos essa dúvida.

Quando estávamos sozinhos a conversar, ele disse: "Gostei muito da intervenção. E mais! Eu comecei com uma ideia, que era já uma ideia que eu tinha, e você falou diferente do que eu achava. E eu agora acho que mudei a minha ideia." Eu pensei que ele estava a falar sobre a Florbela Espanca, porque ele tinha interrompido o ensaio para falar dela, e ele respondeu: "não, é sobre a sexualidade dos sexos e sobre as mulheres, eu não estava convencido disso das poucas ruas, como você disse no início, e agora convenceu-me. E também não estava de acordo com a ideia de trocar de sexo, e agora estou. Viva!".

Quem vir o espectáculo perceberá o que este senhor quis dizer e eu achei mesmo "Viva" esta coisa de estar só a fazer teatro e um espectador espontâneo de 86 anos ter entendido a simplicidade e a dignidade da transexualidade. Despediu-se a perguntar se a reunião era amanhã à mesma hora. De facto, reúno-me com quem quiser, à mesma hora, hoje, na Casa d'Artes do Bonfim, para contar esta e outras histórias, mas sobretudo para receber mil de volta. Até logo.

 
©Sara Barros Leitão

©Sara Barros Leitão

Dia 16 | 18 de junho de 2019

Cheguei com a cabeça desnorteada. Trazia preocupações e ansiedades que não ajudariam ao ensaio. Se tivesse marcado este ensaio sozinha, provavelmente não tinha vindo. O compromisso que tinha com a Inês obrigou-me a não só comparecer, como a encontrar a disponibilidade mental para um processo de criação artística.
Quando nos sentámos, a voz tranquila da Inês começou a acalmar-me e a pesquisa que ela partilhava do que tinha conseguido recolher no fim de semana fez-me esquecer o mundo exterior para me concentrar no mundo exterior. Isso mesmo! Afinal, isto é sobre ruas.

Temos feito descobertas absolutamente fascinantes e comoventes. Temos lido histórias de vida e histórias de morte que nos arrepiam e nos deixam em silêncio. Da Palmira de Sousa à Gisberta Salce Júnior, que ainda não dão nome a nenhuma rua, não temos dúvidas que somos duas mulheres a construir um espectáculo que ajuda a devolver a história às mulheres.
No outro dia perguntavam-me: “Todos Os Dias Me Sujo De Coisas Eternas, é um nome bonito, mas aposto que, feito por ti, vai ser sobre mulheres, não é?”. Fiquei sem saber o que responder. Na verdade este é um espectáculo sobre ruas. É curioso que as pessoas estejam sempre à espera que eu trabalhe sobre “a mulher”.

Ainda não fiz nenhum espectáculo que fosse sobre a mulher. Fiz trabalhos sobre arquivo, outros sobre memória, outros sobre urgência, outros sobre livros, outros sobre literatura universal, e este sobre ruas. Em todos é sobre a mulher. Porque, ao contrário do que a história registou, elas estiveram sempre lá. Por isso, quando é sobre um arquivo é sobre mulheres. Quando é sobre memória é sobre mulheres. Quando é Shakespeare é sobre mulheres. Quando é sobre ruas é sobre mulheres.

Hoje descobrimos que em 2011 havia 2007 topónimos no Porto. Até hoje, só há 51 nomes de mulheres. Os nomes das mulheres representam 2,5% das ruas do Porto. Para compararmos melhor, só as ruas com nomes de homens que começam por Dr. são 86. Só uma mulher médica está representada nas ruas do Porto, e o seu nome não é precedido por Dra.
Por isso, se falar sobre ruas não for falar sobre mulheres, alguma coisa estarei a fazer errado.

 
©Sara Barros Leitão

©Sara Barros Leitão

Dia 13 e 14 | 14 de junho de 2019


Quase duas semanas sem ensaios não significa, necessariamente, que o meu pensamento tenha fugido do espectáculo. Antes de nos atirarmos para uma nova criação podemos projectar a forma como queremos que ela aconteça. Os dias em que ensaiamos, os dias em que teremos a pesquisa fechada, o texto terminado. Imaginamos - pelo menos é o que me acontece - algumas cores, ou momentos que não são bem cenas concretas, mas antes breves impressões, como flashes, de situações que podem acontecer no espectáculo. Imaginamos como será a sala de ensaio, se não a conhecermos. Como será a equipa, as relações, os momentos em que não fazemos a mínima ideia e não temos nenhuma resposta. Muitas das vezes, acontece-me não ser capaz de propôr que as coisas sejam feitas como imaginei. O mais estranho é que isto também me acontece quando trabalho com uma equipa muito reduzida, ou, até, quando trabalho sozinha. É estranho, não é? Sempre pensei que só eu me sentia assim quando dirigia processos. Pensei que a minha falta de confiança, tantas vezes disfarçada, me impedia de pedir que se tentasse exactamente como a minha cabeça e o meu impulso me diziam. E continuo sem saber se sou a única a sentir-me assim, ou se, os tantos criadores e criadoras que me dirigem noutros momentos também sentem esse pudor.

Acho que para esse bloqueio pode ter contribuído a leitura de algumas entrevistas de pessoas que admiro, ao longo dos anos, quando falam dos seus processos, em que parece que tudo é orgânico e começa sempre de dentro para fora. Demorei muito tempo para perceber que há muita coisa que começa de fora para dentro, e a aceitar isso com naturalidade e sem preconceito. Assim como também há muita coisa que não se tem que descobrir em conjunto, de forma surpreendente. Às vezes sabe-se que vai resultar, porque sim. E é preciso dizê-lo para, agora sim juntos, tentemos.
Neste processo imaginei ensaios perfeitos e enganei-me. Imaginei um plano de trabalho que iria cumprir escrupulosamente, e passo os dias a falhar. Imaginei que a esta altura já teria quase tudo pronto e, a menos de um mês para a estreia ainda não tenho nada. O que nunca imaginei foi que, o meu instinto em convidar a Maria Inês Peixoto para fazer assistência à criação estaria tão certo, seria tão feliz, faria tanto sentido.
Quando me perguntam: como é que não te perdes no meio de tanto papel, de tanta informação? Como é que sabes o que seleccionar? Eu não sei responder, porque faço tudo com o instinto. Se calhar, é mesmo o único caminho possível.

 
©Sara Barros Leitão

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Dia 12 | 30 de maio de 2019

Esta entrada pertence ao dia anterior. Mas ontem, o dia foi demasiado violento para conseguir escrever sobre ele.
“ESCUTO HISTÓRIAS (de amor, desamor, intrigas, finais felizes, sem final) TENHO CHÁ, BISCOITOS E TEMPO (também podemos ficar em silêncio)”
Era isto que dizia no cartaz que tinha pendurado na parte de trás da minha cadeira. À minha frente, outra cadeira, ao meu lado, chá e biscoitos, dentro de mim, tempo e escuta.
Eram 17h quando cheguei à Praça da Batalha com a Inês. Preparámos tudo, eu sentei-me e ela afastou-se. Não sei se chegaram a passar dez minutos até se sentar a primeira pessoa à minha frente. Saímos da praça já passava das 20h30. Durante estas horas, a cadeira à minha frente só esteve livre naqueles primeiros momentos. As quatro pessoas que se sentaram para conversar, ficaram lá, quase quarenta minutos cada. E, pelo meio, estiveram, pelo menos, três pessoas à espera mas que entretanto desistiram.
Em todas as vezes a conversa começou da mesma maneira:
Que histórias é que quer ouvir?
As que me quiser contar.
E todas começaram a contar a grande história da sua vida. O tempo não chegava. Mas era essa a história que todos quiseram que eu escutasse.
Não vou contar nada do que ouvi. Também não vou usar nenhuma dessas histórias no espectáculo. O dia de ontem foi violento, bonito e transformador. Todas as pessoas que se sentaram, antes de começar a sua história, inspiraram profundamente e começaram a chorar. Este momento comum em todas elas, todas tão diferentes umas das outras, fez-me perceber que as pessoas são mais sozinhas do que pensamos, que as pessoas sofrem mais do que imaginamos, e que um momento de franca escuta é raro e emociona.
Não há nada de mais poderoso do que duas pessoas, desconhecidas, sem nada a dever nem a cobrar uma a outra, sem nenhuma ligação passada e com a certeza de nunca mais se verem no futuro, se sentarem frente a frente, olhos nos olhos, e conversarem. Só conversar. Estar. Ouvir. Falar. Olhar.
Três das quatro pessoas disseram a mesma frase no meio da sua história: “Eu só precisava de alguém que me desse força na minha vida. E não tenho.”
A quarta pessoa terminou a história a dizer: “Não sei explicar isto melhor, mas eu preciso de morrer no Porto. Aqui. Na Praça da Batalha.” E nunca compreendi nada tão claramente. Sim, eu também.

 
©Sara Barros Leitão

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Dia 11 | 28 de maio de 2019

Encontrei-me com a Inês às 17h na Rua Passos Manuel. Apesar da placa da rua se referir a Passos Manuel como político e reformador do ensino, ambas sabíamos que esta era mais uma rua do Porto que guardava a memória da Revolução Liberal. Rua do Heroísmo, Rua da Alegria, Rua da Firmeza, Rua da Bataria, Rua dos Mártires da Liberdade, estão entre os cerca de 90 topónimos da cidade que celebram e imortalizam esta vitória. Ambas sabíamos, porque ambas andamos entre o apaixonadas e o obcecadas com esta pesquisa.

Encontrámo-nos na Rua Passos Manuel, não dissemos nada sobre essa rua, porque ambas sabíamos que a outra sabia, e, nesse pacto silencioso, entrámos num café. A música era alta e desajustada à conversa íntima e empolgante que estávamos prestes a ter.

Esta entrada de diário pertence à Inês. Foi ela que hoje foi ao Gabinete do Munícipe procurar as actas da Comissão de Toponímia da cidade do Porto. Encontrou actas escritas à mão em cadernos enormes com capas de pele, falou várias horas com a responsável pelo secretariado da comissão, encheu as páginas do caderno com notas e referências para partilhar comigo. Não satisfeita, e porque ainda faltavam duas horas para o nosso encontro, desceu aquela que hoje é a Avenida dos Aliados, mas que também se chamou Avenida da Liberdade, e se passou a chamar Avenida das Nações Aliadas em 1918 - embora, por imposição do povo que lhe chamava Avenida dos Aliados, tenha alterado ligeiramente o seu nome. Diz-se que esteve em cima da mesa a proposta de se alterar para “o nome do maior português de hoje a que se deve a obra gigantesca dos Municípios - Avenida Salazar”, mas isso, nem eu nem a Inês conseguimos ainda confirmar. Então, a Inês desceu a avenida e foi até à Casa do Infante, onde está o Arquivo Municipal do Porto. No regresso, ela encontrou dois exemplares de “O Tripeiro”, cujas fotocópias e as referências tantos nos têm acompanhado e um pequeno livro sobre a revolta de 31 de janeiro, que fez a rua mudar de nome dezenas de vezes, embora de todas elas, tirando sempre o ar a quem a sobe.

No nosso encontro a Inês falou mais do que eu. Estava entusiasmada com a pesquisa, com os temas e com as descobertas. Ofereceu-me os três exemplares, e o carioca de limão que lhe paguei ficou bastante aquém daquele gesto tão generoso. Contei-lhe como estava a correr o tratamento do material para a dramaturgia do espectáculo. A Inês disse que tudo estava a fazer sentido e que parecia que a pesquisa estava a torcer por nós: todos os assuntos se encadeavam e apareciam no momento certo.

Estamos as duas alinhadas e a caminhar para algo que ambas acreditamos: a pequena história, o pequeno pormenor, aquele momento que damos por nós a sorrir ou a arrepiar só por causa da história de um nome de uma rua.
Amanhã vamos para a rua, as duas, desta vez à procura de outras histórias: as das pessoas daquelas ruas. Vamos ver como corre.

 
©Sara Barros Leitão

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Dia 9 e 10 | 25 de maio de 2019

Não sei como continuar este diário sem me tornar repetitiva. Primeiro porque a fase de trabalho em que me encontro é sempre igual: cerca de três ou quatro horas por dia, em silêncio, a ler compulsivamente, tirar notas, escrever e pesquisar. Depois porque as dificuldades quotidianas continuam demasiado familiares: pouco tempo para trabalhar e muitos trabalhos acumulados que me tiram a concentração. E, por último, porque os desafios práticos deste processo levam-me à mesma encruzilhada: uma investigação que parece não ter fim, uma sensação de que me propus fazer um trabalho de anos em dois meses, um não saber por onde começar, o não saber o que agarrar, o achar que o material é demasiado bonito e valioso para poder tocar nele, mexê-lo, apropriar-me dele.
Nos últimos dois dias tenho estado nas Caldas da Rainha para fazer a reposição de um espectáculo. Apesar de parecer que não saí do sítio, uma vez que não adiantei uma linha de texto, nem organizei apontamentos, o facto de estar longe de casa, sem distrações diárias, tem-se revelado produtivo. Acordo cedo e começo a trabalhar às 10h da manhã na secretária do quarto de hotel. Páro apenas para o almoço. Tenho instituído que trabalho até às 18h. Depois vou a pé para o teatro, janto pelo caminho, e mudo completamente o foco para o espectáculo que vou fazer à noite.
São quase 18h e obrigo-me a parar. Obrigo-me a escrever esta entrada, mesmo não tendo nada de novo ou de interessante a registar. Obrigo-me a pensar o que marcou a minha leitura de hoje, para onde viajou a minha cabeça quando estava a ler estas páginas todas.
Hoje é dia 25 de Maio, e é também o aniversário da minha mãe. Há muitos quilómetros e muitas ruas que me impedem de estar com ela neste dia. Como a pesquisa está lenta e como me propus a ler integralmente os dois enormes volumes do Prontuário de Toponímia Portuense, ainda só cheguei à letra B. Hoje, no dia 25 de Maio, parei o trabalho na leitura da Rua do Bonjardim. O nome desta rua tem origens desde 1296, onde vem mencionado no testamento de um bispo. É uma das mais compridas ruas do Porto. Pensa-se ter sido uma antiga estrada romana, ou pelo menos medieval, que iria até Guimarães.
São quase 18h e obrigo-me a parar. Escrevo a nota: “25.MAIO - PAREI AQUI”. Fecho o livro, abro o computador para escrever esta entrada de diário e lembro-me de estar com a minha mãe na Rua do Bonjardim e ela me dizer: “um dia parei aqui o carro, apanhei um autocarro para Lisboa e fui Campeã Nacional.”
Abro o documento com o texto do espectáculo e escrevo quase uma hora seguida sobre sobre o dia em que a minha mãe também parou na Rua do Bonjardim - não a leitura mas o carro - e sobre aquele campeonato de atletismo em que voltou para o Porto recordista nacional.
Anatole France escreveu que “as cidades não são mais do que livros, lindos livros com estampas em que figuram os nossos avós”. E eu acho que as ruas podem bem ser a memória que imortalizamos dos nossos pais.
Parabéns, Mamã.

 
©Sara Barros Leitão

©Sara Barros Leitão

Dia 6, 7 e 8 | 22 de maio de 2019

Esta recorrência em juntar dias de trabalho na mesma entrada de diário é sintomática da dificuldade que tenho sentido em conseguir dedicar um dia inteiro apenas a este projecto. Se, por um lado, ter o foco em várias frentes absolutamente distintas pode contaminar positivamente um trabalho que pretende reflectir as ruas do Porto - também elas com vidas misturadas e não planeadas, por outro, começo a sentir que estou muito atrasada e dispersa no processo e, infelizmente, o volume de trabalho não vai diminuir.

As horas que dediquei a este espectáculo nos últimos três dias não perfazem um dia normal de ensaios. Para piorar, é quando estou a poucos minutos de um compromisso que começo a ficar concentrada para me debruçar neste material. Nós últimos dias isso aconteceu sobretudo quando lia a pesquisa. Era a poucos minutos de ter que sair de casa que parecia que a leitura se começava a revelar e a abrir caminhos na minha cabeça.

Hoje aconteceu o mesmo, mas com a escrita. Acabei por cancelar completamente a reunião depois de várias mensagens em que me confessava atrasada. Justifiquei a falta como “um contratempo inadiável”, e era mesmo disso que se tratava.
Escrevi cerca de três horas seguidas. Não jantei. Fui para o ensaio da noite (a reposição de um outro projecto) com a cabeça totalmente na escrita, na visualização das cenas que teimavam não me abandonar.
Quando cheguei à portaria do teatro, tinha à minha espera os dois volumes do “Prontuário da Toponímia Portuense”, que tinham sido entregues durante a tarde pelas Edições Afrontamento. É a segunda vez, no espaço de uma semana que sou salva pelos livros.

Esta edição necessitou de anos de revisão, e, em segundos, disponibilizaram-se, prontamente, a enviar-me um exemplar no dia seguinte ao meu pedido. Isto também é Porto. Cuidar dos outros. E, sobretudo, resistir, sobreviver.
Lembrei-me que não posso falar da história da cidade sem falar do seu presente. Não serve de nada estar a procurar histórias de quem habitou aquelas ruas e aquelas casas se, hoje, essas pessoas já não estão, ou não podem estar, nessas ruas e nessas casas.

Hoje li uma notícia que anunciava a reabertura do alfarrabista João Soares, que tantas vezes visitei na Rua das Flores, na Rua Formosa. Cruzei o que tenho lido sobre a resistência da cidade - pela cidade - e que está cravada no nome que deu às suas ruas. E pergunto-me, como resistir agora, onde viver numa qualquer rua no centro do Porto é um privilégio de 700€ por mês. Pergunto-me, ainda, como fazer para nunca perdermos as Edições Afrontamento, fundadas em 1963 e sediadas na Rua de Costa Cabral, 859, que nos conhecem, que sabem o que estudamos e que fazem o impossível para recebermos o livro que nos vai salvar o dia. Pergunto-me como se fala da cidade, quando não se sabe o nome dos vizinhos. Como saber em quem votar, se não vamos à reunião do nosso condomínio.

 
©Sara Barros Leitão

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Dia 5 | 16 de maio de 2019

Ontem não consegui trabalhar para este projecto. Hoje acordei cedo e tinha planeado dedicar-me a ele todo o dia. Acontece que só por volta das 16h é que consegui começar. É mesmo difícil estar sozinha num processo de trabalho. Eu sei que é um enorme lugar comum dizer que é preciso uma grande disciplina para se trabalhar sozinho, mas os lugares comuns existem porque são mesmo comuns, e porque, de alguma maneira, temos sempre que sentir que pertencemos a um lugar, nem que seja um “lugar comum”. Afinal, é mais ou menos isto que as ruas são.

A partir do momento em que encontrei o lugar-singular: o espaço e a concentração certas para me dedicar ao projecto, tudo começou a fluir com bastante rapidez. Não avancei rigorosamente nada na escrita, nem sequer como exercício. No entanto, organizei a pesquisa e encontrei alguns caminhos que me vão levar, de novo, à biblioteca para os investigar.
Olho para o relógio e são quase 19h. Eu que passei o dia a inventar outras coisas para não pensar nisto, agora perdi-me no tempo e já está quase na hora em que fecha a editora onde encomendei um livro há dois dias.

Guardar papéis, livros, canetas sem tampa, procurar as tampas. Não sei das meias, estou descalça desde que cheguei, mas trouxe meias de certeza. Mochila, computador, gabardine - estou no Porto, pode chover a qualquer momento. Desço Fernão de Magalhães, viro Fernandes Tomás, Bonjardim, e corto à direita. Rua Guilherme Costa Carvalho? Páro na placa. Estou a um minuto dos Aliados onde devia chegar antes das 19h, faltam dois minutos para as 19h. Rua Guilherme Costa Carvalho? Nunca tinha ouvido falar. Passei aqui toda a minha vida, e nunca reparei neste nome. 19h! Corro. Atravesso os Aliados no vermelho. Praça General Humberto Delgado, cheguei, o livro está na minha mão, as ruas foram todas masculinas.

Recupero a respiração. Acho que este livro me vai ajudar, estou ansiosa por começá-lo. O coração está ofegante. Pela corrida ou pelo livro? Quero descer para ser mais fácil. Vou pelo passeio central dos Aliados, olhos postos no prefácio. Quase esbarro numa dezena de turistas. Levanto a cabeça: a estátua da Menina Nua, no meio da avenida mais importante do Porto. Dou a volta à estátua, nem uma legenda. Mais acima está o Almeida Garrett, enorme, gigante e vestido, mesmo em frente à Câmara, a olhar para cima, para o céu! Mais abaixo está D. Pedro IV, também muito vestido, em cima de um cavalo, muito alto, de certeza que, dali, consegue ver o Douro. E aqui, uma rapariga, nua, sem legenda. Se antes pensava que as ruas não faziam jus às mulheres, eis-me agora com o livro “Toponímia Feminina Portuense” na mão, a olhar para esta estátua. Ainda está tudo por fazer.

 
© Sara Barros Leitão

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Dias 3 e 4 | 14 de maio de 2019

Ontem continuei a investigação na Biblioteca Municipal do Porto. A ideia é ler as duas intermináveis pastas amarelas com os recortes de jornal de “O Primeiro de Janeiro”, onde tem centenas de entradas sobre as ruas do Porto. Tinha ficado no fim da letra B, e ontem nem consegui passar da C. Quando dei por mim tinha os olhos fechados e não me lembrava das últimas três ruas que tinha lido. Adormeci.
Resolvi voltar para casa e avançar com as transcrições de excertos de livros e textos para o word para me ajudar na escrita do espectáculo. Foi a custo que consegui transcrever uns três ou quatro documentos, até que… adormeci.
Passei rapidamente para outra tarefa, uma das mil que tenho em atraso, e resolvi não voltar a pegar neste projecto durante aquele dia.
À noite recebi uma mensagem da Sílvia a dizer que tinha lido uma entrada do meu diário de bordo e que conhecia um livro que talvez me interessasse. Enviou-me a referência e aquele momento foi tão transformador que quase não consegui adormecer quando devia. Fiquei a pensar, em primeiro lugar, em como a informação do livro iria ser preciosa para este trabalho - é que era exactamente aquilo que eu procurava! Foi então que dei por mim a pensar que os livros têm sempre as respostas, não é? Mas não. Como não adormecia, e almofada é boa conselheira, cheguei à conclusão que não é sempre sobre os livros. É sobre as pessoas. São sempre as pessoas: as que os escrevem, as que os editam, as que os lêem, as que os guardam, e as que se lembram de perder tempo no seu dia (tempo, esse bem capital mais valioso que uma acção), para enviar mensagens a outras pessoas, sugerindo um livro.
Hoje vim para o espaço de ensaio pela primeira vez. Esse acto que é sempre tão importante num processo de trabalho, de repente, não teve importância nenhuma. Pousei as coisas e comecei a escrever, a desenhar, abri mapas, notas antigas em cadernos. Acho que sei como é que isto pode começar. Mesmo que não comece assim, imaginar esta primeira cena tira-me o sono. Parece-me um bom princípio.

 
©Sara Barros Leitão

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Dia 2 | 11 de maio de 2019

O segundo dia de pesquisa foi feito a seis mãos, seis olhos e três corações. Passei a tarde na sala de leitura da Biblioteca Pública Municipal do Porto com a companhia da Maria Inês Peixoto, que faz a assistência à criação, e com o Sr. P., que se tem tornado um cúmplice de arquivos e um amigo fiel. Foi através das suas mãos seguras e passo firme, que cruzámos os corredores da biblioteca e requisitámos para consulta os materiais que queríamos pesquisar. Numa tarde inteira só consegui ler as entradas dos nomes das ruas do Porto até ao final da letra B. Consultámos as crónicas de O Primeiro de Janeiro dos anos 70, onde se reservava um espaço chamado "Toponímia Portuense", que dava a conhecer a história e a evolução dos nomes das ruas da cidade.
Até à letra B são várias dezenas de ruas. Entre todas elas, só há uma personalidade feminina: Aurélia de Sousa, que apesar de se chamar "rua", vem descrita no jornal como "viela".
Redescobri a Rua das Antas. Li sobre a Rua da Alegria e a relação insólita com a Praça da Alegria. Passei pela Rua do Aleixo, Rua Antero de Quental, Rua do Ateneu Comercial do Porto, "uma sociedade recreativa fundada por cavalheiros que reuniu 117 accionistas (a 2000 reis cada acção) para promover e cimentar relações de benevolência e boa sociedade entre as pessoas que vierem regularmente a sua casa, e proporcionar-lhes um passatempo honesto e civilizador, por meio de reuniões ordinárias, dança, música, conversação e jogo lícito". Confundi-me na Rua da Boavista - que já deu nome a três ruas diferentes desde 1561, desiludi-me na Praça da Batalha e assisti a uma entrega de testamento com ar de libreto de ópera na Rua de Azevedo.

A Maria Inês comentava no fim do trabalho que era interessante perceber porque é que tinha tendência para seleccionar umas coisas e deixar outras de lado. Imagino que a seguir venha aquele sentimento de que o material é demasiado extenso e ficaremos bloqueadas a pensar: por onde é que começamos?
Seja como for, hoje ainda estou tranquila, e com a sensação de que o primeiro instinto nos levará a algum lugar, nem que seja a uma rua sem saída. Como vamos a pé e a passo lento, voltaremos para trás e recomeçaremos.

 
©Sara Barros Leitão

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Dia 1 | 10 de maio de 2019

Comecei hoje a pesquisa para a criação "Todos Os Dias Me Sujo De Coisas Eternas", a estrear na Casa d'Artes do Bonfim, no programa da Cultura em Expansão. Passei a tarde no Arquivo Municipal do Porto. Queria consultar as actas da Comissão de Toponímia da Cidade do Porto. Infelizmente as actas não estão lá, disseram-me que talvez estejam na Divisão Urbana, no Gabinete do Munícipe.
Mergulhei no projecto há poucas horas e já sou, de novo, uma detective atrás de documentos que nem sei se existem, nem sei se me vão servir, nem sei se vão ser interessantes para o projecto.
Mas, como sempre, os arquivos contam mais do que esperamos. A forma como estão organizados, as pessoas que estão a cuidar deles, até as pessoas que nos guardam a mochila e se certificam que entramos apenas com um lápis e um caderno. Essa tarefa tão simples é levada com o maior profissionalismo e dedicação, com humor e com amor. Bastaram os três minutos na entrada do Arquivo para perceber parte da essência que o espectáculo pode ter. No meio de tantas folhas, é sempre sobre pessoas.
Apesar de não ter encontrado as actas, encontrei o primeiro relatório da criação da Comissão Toponímia, escrito a "15 de Âgosto de 1935", numa altura em que agosto não só tinha maiúscula, como esta estava abrigada por um til. Talvez em 1935 o calor do verão fosse diferente e precisássemos de proteger o mês à sombra.
O relatório tem 68 páginas que se lêem de um só fôlego. De todos os nomes de ruas, arruamentos, praças, travessas que o relatório dá conta, e de todos os nomes de personalidades que o relatório considera possíveis de uma rua receber, não consta um único nome de mulher.
Decidi que vou escrever um diário de bordo no fim de cada dia de ensaio e pesquisa. Não vai servir senão para mim, mas tenho a certeza que devo esse acto de escrever a todas as mulheres que, antes de mim, depois de mim, enquanto eu vivo, não podem escrever. E a todas as que, escrevendo, criando, fazendo, construindo, pensando, foram, são, serão, silenciadas. Se sempre existiram mulheres, onde estão elas na nossa história? Se os nomes das ruas reflectem as personalidades intelectuais e políticas, não há dúvida que sempre tentaram colocar a mulher no espaço privado. A mulher dentro de casa, não a mulher nome de rua.