No recente espectáculo “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa” acumulo as funções de actriz, encenadora e dramaturga. É, como o próprio nome indica, um monólogo e, apesar de estar sozinha em palco e de acumular três funções tão essenciais, tem sido um processo muito partilhado e discutido com a equipa criativa, que, mesmo depois da sua estreia no passado dia 4 de novembro, continua a preencher-nos as conversas às horas de refeição, que nos levam a rectificações, ajustes, mudanças no texto, cortes de cenas.
Estreei este espectáculo como o imaginei. Estava segura, feliz e tinha tido todas as condições de produção e criação. Desde a estreia não parei de o fazer, todas as semanas em cidades diferentes, contando num mês e meio já sete cidades e treze récitas. Isso tem possibilitado crescer com o espectáculo, dar-lhe espaço para encontrar novos públicos, novas salas, novos problemas, novos espantos.
Estar dentro e fora ao mesmo tempo traz desafios e frustrações, mas também uma liberdade viciante de poder tomar decisões estruturais a qualquer momento que influenciam o espectáculo e a actriz.
Desde que comecei a pensar nesta criação que sabia que haveria récitas com interpretação em Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. Não só porque são co-produtores do espectáculo estruturas com práticas de acessibilidade, como o Teatro do Noroeste - CDV, A Oficina, o Teatro Viriato ou o Teatro Municipal Baltazar Dias, onde sabia, desde logo, que essas sessões teriam lugar, como essa era uma preocupação e uma vontade eu tinha.
Acontece que, entre o momento em que se imagina o projecto e a sua concretização estão meses de trabalho, de imprevistos, de descobertas e da própria criação, que é indomesticável e encontra sempre um caminho inimaginável. Perdi-me em tudo isso durante os ensaios, concentrada em pôr de pé um espectáculo, e não voltei a pensar nos dias em que teria este tipo de sessões.
Acabei por ignorar esta questão até ao momento em que fui forçosamente confrontada com ela, à medida que se aproximavam as récitas agendadas com estas acessibilidades. Foi quando me perguntaram de que lado do palco iria colocar a intérprete LGP para se acrescentar um projector, que precisei de reflectir sobre o que estava a fazer.
Inicialmente, antes de existir espectáculo, estava certa de que iria integrar a intérprete em cena, contracenando com ela, proporcionando a possibilidade de o público surdo usufruir do espectáculo sem o constante ping-pong de cabeça, e aliviando-o do enorme esforço em tentar acompanhar o que se diz com o que está a acontecer. E, no entanto, agora que tinha o espectáculo criado, que já me tinha habituado a ele daquela forma, não tinha qualquer vontade de o adaptar, sob o risco de o desvirtuar, de acabar por ser “outro” espectáculo que não o “meu”. Naqueles segundos em que procurava a resposta sobre o lado da cena onde se colocaria o projector para a intérprete ficar de pé e estanque durante uma hora e quarenta, quase cedi à confortável tentação de dizer direita ou esquerda, seguir a minha vida, apresentar o meu espectáculo, ignorar aquela figura que vamos procurando que seja o mais invisível possível.
Durou poucos segundos.
Vamos ter de ensaiar a integração da intérprete no espectáculo.
Mas em cena?
Em cena. Ao meu lado. Comigo. Juntas. O seu corpo terá de habitar o espaço como o meu o habita. A sua presença será dramaturgia.
Não, não era particularmente fácil neste espectáculo, como não é em nenhum.
O espectáculo é sobre solidão. É sobre uma mulher sozinha, que carrega o mundo às suas costas. Incluir uma intérprete, passaria a ser um “monólogo” com duas pessoas em cena. É evidente que isso iria influenciar as leituras do público, que iria colocar em causa praticamente todas as cenas, toda a dramaturgia.
Penso que estes pensamentos são transversais a todas as encenadoras e encenadores na hora em que pensam nestes assuntos. É que de facto é muito mais confortável deixar as coisas como estão, privilegiar a obra na sua potência máxima, e quem não conseguir acompanhar, pode procurar outro tipo de obras e de arte que usem outros sentidos para o seu usufruto.
Foi feliz a hora em que decidimos, em equipa, arriscar. Foi, na verdade, um conjunto de felicidades que se encontraram todas naquele palco de Guimarães na noite de sábado. A começar pela Cláudia Braga, interprete, que disse logo que sim, que aceitou vestir um figurino, assistir a um ensaio e passar mais umas horas a ensaiar comigo; à minha equipa, que dedicou vários turnos de trabalho a pensar em conjunto, a experimentar, a comentar, a sugerir e a ensaiar como poderíamos construir esta integração no nosso espectáculo; à Anaísa Raquel, que apesar de já ter o guião de audiodescrição fechado, me alertou atempadamente que esta alteração ia necessariamente alterar o guião, e se disponibilizou desde logo a vir mais cedo para ensaiar connosco, contribuindo ainda com o seu olhar exterior e atento; à equipa d’A Oficina, que nos deu todas as condições para que tudo fosse possível.
Não há palavras, nem gestos, que possam descrever a entrega, a disponibilidade e a confiança com que a Cláudia se atirou para o palco naquela noite. Parámos de ensaiar 30 minutos antes de abrirmos portas. Quase não descansámos. Estávamos ambas nervosas, sem certezas de termos assimilado tudo o que havíamos combinado.
Acho que fazer teatro é sempre uma tentativa. E se não for para andar na corda bamba entre acertar ou falhar, nem vale a pena. Antes de abrir portas, dissemos umas às outras (porque a equipa era toda composta por mulheres), pode não resultar, mas vamos ter de tentar, e o público será cúmplice dessa tentativa, se não resultar, amanhã logo pensamos de novo em tudo isto, como aliás temos andado a fazer nos últimos meses. Muita merda.
E fomos.
Curiosamente, encontrei vários espectadores e espectadoras que estavam naquela noite a repetir o espectáculo. Perguntei a um espectador que tinha visto a estreia, e que agora via pela segunda vez, se nesta noite tinha visto “outro espectáculo”. E ele respondeu-me, com a maior naturalidade, que não, que agora tinha visto o espectáculo completo.
O que aconteceu em Guimarães naquela noite foi um conjunto de felicidades que queremos repetir. Sei poderá nem sempre ser assim. Sei que nem em todos os projectos isto é possível. Mas também sei que muitas vezes é. E quando queremos, ainda é mais.
Seguimos viagem e seguimos com as tentativas. Às vezes acertando mais, outras menos.
A próxima paragem é em Viseu, no Teatro Viriato, onde repetimos a experiência na sessão de sábado, e em fevereiro no Funchal, no Teatro Municipal Baltazar Dias.
15 de dezembro de 2021