24 de maio de 2017
Acontece mais ou menos assim:
Compras as primeiras cerejas do ano. Isso lembra-te que é primavera e por isso ficas mais feliz. Toda a gente sabe que a primavera é a estação mais feliz, se fores uma pessoa sem alergias.
Chegas a casa e pões todas as cerejas numa taça. Não pensas se vais ser capaz de comer as cerejas todas. Pões todas numa taça porque sabes que vais ser capaz de comer todas, afinal, são cerejas.
Enches a taça de cerejas com água e depois abres a tua mão direita, agarras nas cerejas, e com a mão esquerda viras a taça de modo a verter a água para a banca.
Caem uma ou duas cerejas. Se for o caso de caírem três é porque duas delas são gémeas e andam sempre agarradinhas.
Ficas um bocado chateada porque tinhas a banca com loiça suja e as cerejas esconderam-se entre os pratos e canecas do pequeno almoço de hoje e o jantar de ontem.
Tu não tens necessariamente culpa, isso acontece porque o espaço entre o teu polegar e o teu indicador é maior do que a distancia entre os outros dedos.
Depois sentas-te, e vais buscar o livro que andas a ler. Estás no último capítulo e, como não queres acabar, voltas umas páginas atrás e tentas convencer-te que o que leste no autocarro não conta porque estava muito barulho e cheirava a atum.
Começas por escolher as cerejas-mais-vermelhas-quase-pretas. Dentro dessa selecção, escolhes as mais duras.
A seguir comes as cerejas-não-tão-vermelhas mas vais afastando as que têm partes moles, as que parecem azedas e as que têm mau aspecto.
Quando dás por ti, estás no último parágrafo, na última linha, a Karenina morreu, o Levin voltou para o campo, as cerejas acabaram e nas pontas dos dedos só sentes os caroços frios e húmidos. O livro acabou e tu acabaste por comer as cerejas todas, mesmo aquelas que no início nunca pensaste que ias comer.
Parece que o mundo se uniu contra ti. O livro acabou. As cerejas acabaram. Numa situação normal, estarias condenado à solidão. Sem livro e sem cerejas. Mas não. Tu estás mais feliz do que nunca. É primavera e tu pensas que não há nada que encha mais do que um livro e nada que nos preencha mais do que cerejas, ou ao contrário.