Porto, 8 de março de 2020
Quando ontem peguei no meu telemóvel, numa pausa do ensaio, tinha cerca de uma dezena de notificações de mensagens e comentários na minha conta de Instagram. Fiquei perplexa. Não me lembrava de ter ter feito nenhuma publicação e não percebi a que se devia tanta actividade nas minhas redes sociais.
Abri a aplicação e percebi que tudo estava relacionado com um comentário que tinha deixado numa publicação de outra conta. A publicação em causa era um conjunto de imagens com várias representações de “O que é ser mulher”. As imagens não eram fotografias, eram desenhos em que se podia reconhecer alguns traços de corpos, mas não representavam ninguém em particular. Víamos um corpo de uma mulher, com um bebé ao colo, de calças e soutien, com a barriga à vista. Era uma barriga com estrias, flácida, e com uma representação da cicatriz da cesariana. Na segunda imagem víamos uma mulher sorridente, a segurar a toalha que secava o cabelo com os braços levantados, e nos sovacos vários pelos. A seguir uma imagem de uma mulher na praia, de bikini, com uma barriga saliente, o peito descaído, e as coxas largas, provavelmente, com celulite. Na seguinte víamos uma mulher a levantar a saia, e a olhar para as cuecas, cheias de sangue. Na última, uma imagem de um corpo de homem, com pêlos no peito, barba, e maçã de adão, que vestia uma camisola de alças finas. Na descrição da publicação lia-se “Há muitas formas de ser mulher”.
Por ter concordado, deixei o meu “like”. E quando deslizava para baixo, deparei-me inevitavelmente com a caixa de comentários. Não tenho especial prazer em ler caixas de comentários, é uma actividade pouco higiénica e que pode ser muito cruel. Quando faço um esforço por sair da minha bolha e ler os comentários, controlo-me sempre para não responder. Leio para ficar a conhecer melhor a matéria de que são feitas as pessoas que me rodeiam e com quem convivo, mas é preciso um esforço homérico para não entrar num diálogo que rapidamente escala para insultos gratuitos, ofensas pessoais, e uma sensação de vómito que começa a aparecer.
Li um dos comentários que dizia: “Desde quando é que uma mulher tem barba?!”. Muitas coisas me passaram pela cabeça. Primeiro pensei no buço mais ou menos visível que todas as mulheres têm. Depois pensei nos vários pêlos faciais, mais ou menos visíveis que todas as mulheres têm. Depois pensei nas várias mulheres que, por dezenas de razões: genética, hormonal, gravidez, doença, idade, stress, etc., têm mais pêlos do que o padrão aceite pela sociedade. Depois pensei em todos os pêlos que as mulheres tiram, durante anos, muitas vezes até antes de terem a primeira menstruação. Pensei neste culto da depilação completa da zona púbica, fazendo a vagina da mulher adulta assemelhar-se à de uma criança, e do quão perverso isso é. E pensei, claro, em todas as mulheres com barba ou pénis, que estão aprisionadas a um corpo em que não se reconhecem. Ou em todas as que se sentem mulheres, uma vez ou várias vezes, seja em que corpo estejam. Por tudo isto, respondi à pergunta “Desde quando é que uma mulher tem barba?!”, com a frase: “Desde que se sinta mulher”.
Foi esta frase que, em poucas horas, esgotou a bateria do meu telemóvel, com tantas mensagens que recebi. A maioria delas foram mensagens privadas, de pessoas indignadas, ofendidas e a ofenderem-me por defender algo tão simples como a mais livre das liberdades: sermos o que sentimos que somos.
Isto leva-me à escrita deste texto no dia de hoje. Há milhares de razões para se comemorar o Dia Internacional da Mulher, há milhares de razões para se aderir à Greve Feminista Internacional, e há centenas de milhares de razões para que se assinale neste dia, a luta de todos os dias. Hoje têm-se partilhado textos de opinião muito interessantes, que chamam a atenção desde as desigualdades salariais entre homens e mulheres, à violência doméstica, o trabalho doméstico não remunerado e não reconhecido feito pelas mulheres, às pressões sociais da maternidade, o assédio sexual, e por aí fora. Aconselho vivamente a leitura de todos os textos que vão sendo partilhados, de modo a acutilar o nosso sentido crítico e espírito de luta. No entanto, no dia de hoje, quis escrever especialmente sobre a violência transfóbica entranhada no sistema.
É de forma comovente e inspiradora que vejo as lutas e as conquistas diárias que vamos fazendo numa sociedade patriarcal, machista e misógina. Mas é importante percebermos que o mundo não é todo cis. Não nos identificamos todos com o género atribuído à nascença em função do nosso sexo biológico. Todas as pessoas transportam em si um mundo inteiro. Todos os mundos são diferentes, únicos e especiais. O mundo não é todo binário e é importante entendermos isso.
Preocupa-me que, desde outubro, tenhamos na Assembleia da República um deputado que diz publicamente que as pessoas transgénero ou transsexuais são “aberrações”, e que viva em absoluta impunidade com tais declarações. Se o caminho já era duro, desde outubro temos um deputado que institucionaliza, normaliza e faz propaganda de um discurso violento e de incentivo ao ódio em relação a várias minorias e, em particular, às que referi acima.
Assim, uso hoje o meu espaço de fala, o meu lugar público, para dar voz a todos e todas as que de alguma forma vêem a sua liberdade e o seu direito de autodeterminação ameaçado ou ainda não concedido.
Hoje adiro à Greve Feminista Internacional, que começa na Praça dos Poveiros às 15h, com um cartaz pelo fim da violência do cis-tema numa mão, e As Novas Cartas Portuguesas na outra mão, por ser sempre um bom livro para ler ou para atirar, gentilmente, à cabeça de alguém.