20 de Outubro de 2019
Escrevo-te num domingo em que o Porto acorda com o céu azul (que apesar de ser uma cor que se associa ao Porto, não é a cor do céu do Porto). Os raios de sol entram-me pela janela e tentam secar a violenta tempestade que ontem fez desviar aviões, cortes de estradas, acidentes, e que reteve o meu irmão num supermercado a inundar, sem saber se ia conseguir chegar a tempo da sua própria festa de aniversário.
Quando penso nessa chuva não me lembro de outra cidade que não a minha, o Porto, e recordo sempre as centenas de vezes em que me abriguei nas Galerias Lumiére na saída da escola para o metro, na saída do Teatro Carlos Alberto para o autocarro, na ida de um ensaio para outro no centro da cidade, e de como cheguei a passar lá horas, aquecida e abrigada, com mesas e cadeiras mais bonitas do que as de qualquer novo restaurante na baixa. Lembro-me daquele dia em que uma loja das Galerias pôs um papel na montra que dizia: “Faço 20% nos guarda-chuvas porque está mesmo a chover muito.” Comprei um e só assim cheguei a casa com a cabeça seca, tudo o resto estava encharcado. E atenção que um desconto destes não é coisa pouca, sobretudo numa cidade em que o capitalismo sabe que tem que fazer da chuva negócio. Na altura pensei: “um papel destes só mesmo no Porto”. Hoje, seis anos depois desse episódio, num Porto que não reconheço, penso: “um papel destes só mesmo nas Galerias”.
As Galerias Lumiére são, talvez, um dos únicos sítios em que um português tem um lugar para se sentar. Até há poucos meses, ainda era lá que conseguias almoçar uma sopa, prato do dia e sumo natural por 5€. Mas mais do que tudo, talvez as Galerias sejam um dos poucos sítios no Porto em que podes estar um dia inteiro sem consumir. O que mais uma vez, não é coisa pouca. As lojas das Galerias não são aquelas lojas históricas que, apesar do seu enormíssimo valor, poderiam ser consideradas pelos liberais como obsoletas. São, pelo contrário, lojas de pequenos empreendedores e pequenas empresas, que vão abrindo, fechando, mudando, resistindo, e vão determinando novas modas, novas culturas, diferentes transeuntes.
Quando fui estudar para o Porto, em 2005, foi nas Galerias que conheci aquele que viria a ser o meu grande amor. Tinha ido estudar teatro, queria saber tudo, ler tudo. Vinha todos os dias de autocarro (e depois de metro) da Maia, uma cidade cheia de empreendedorismo onde não há nenhuma livraria, e descobri o segredo mais bem guardado do Porto: a Livraria Poetria. A única livraria de Poesia e Teatro da cidade, pela qual rapidamente me apaixonei. Se na altura aquilo me parecia um oásis, hoje é uma trincheira. Em 2005 ainda havia a Leitura, a Lello ainda vendia livros e ainda era possível que alunos como eu se sentassem tranquilamente nas mesas do piso de cima a estudar, a consultar e a conversar com o dono. O alfarrabista João Soares ainda estava na Rua das Flores, a Sousa e Almeida ainda não era um hotel e o alfarrabista que nunca soube o nome, perto da minha escola, ainda não era um Escape Room.
Foi na Poetria que comprei o meu primeiro Hamlet, no segundo dia de aulas. Foi lá que conheci a Dina, que ainda hoje tenho a sensação que só me conheceu muitos anos depois de eu a ter conhecido. Nunca lhe perguntei se ela se lembra de todas dúvidas que pacientemente me tirou, dos livros que me mostrou e de como me explicou que Beckett e Brecht não eram a mesma pessoa, como eu achava quando fui procurar “um livro de um autor muito conhecido que era B-qualquer-coisa”.
Entretanto foi na Poetria que comprei as Cartas a um Jovem Poeta, do Rilke, que me inspirou profundamente para escrever aquele que terá sido o primeiro espectáculo que escrevi: As Coisas Pelos Nomes. Foi nas mesas das Galerias Lumiére que tantas vezes me reuni com a Diana para tentarmos fazer o espectáculo da nossa vida, lembras-te? E depois chegou o Paulo, todo molhado de uma chuva muitos anos mais tarde daquela minha primeira molha, e se sentou connosco a dizer que aceitava fazer o espectáculo. Foi lá que eu, a Diana e o André escrevemos a nossa primeira candidatura e ganhámos! Foi lá que estudei um dia inteiro para um exame de Grego. Foi lá que combinei cafés rápidos, que se tornaram em longas conversas de amigos.
E esta semana, antes de ler a triste notícia de que as Galerias irão fechar para dar lugar a um hotel (coisa que realmente faz falta nesta cidade), soube que muitos dos meus alunos de Dramaturgia, foram à Poetria pela primeira vez, com uma lista de livros que falei nas aulas, e que uma dessas alunas está precisamente a terminar “O que é a Dramaturgia”, de Joseph Danan, um livro tão importante e tão difícil de encontrar que se não fosse o Nuno e o Francisco, os novos corajosos que lutam pela livraria mais pequena e mais preciosa do país, talvez ela nunca o tivesse começado a ler.
Eles fecham tudo, eles fecham tudo - fechou a última creche pública do centro histórico - e não deixam nada. Fechou o Sr. António “Farinheiro” - eles fecham tudo - fechou o quiosque amarelo - eles fecham tudo - mais um hotel de luxo - eles fecham tudo - mais um apartments T0 Luxury - eles - agora demoliram o quiosque - eles fecham - vai construir-se um El Corte Inglês na Boavista - fecham tudo, fecham tudo - os velhos assinam contratos que não entendem - fecham tudo - aprovam-se obras de reabilitação que só conservam a fachada - e não deixam nada - Wine and Tapas Very Typical - agora os velhos são expulsos das casas - fecham tudo, fecham tudo - “Mas o assédio imobiliário não existe” - e fecham mais, e fecham mais - e mandam a Vandoma para longe - e não deixam nada - e querem pôr câmaras de vigilância, e querem punir, e criminalizar, e fecham tudo, fecham tudo, e não deixam nada.