4 de outubro de 2019
Texto escrito e lido no encerramento da campanha para as eleições legislativas de 6 de outubro de 2019,
organizado por Pedro Lamares, mandatário do Bloco de Esquerda, no Passos Manuel, Porto.
O desafio que me lançaram passava por escrever um texto para esta noite. Partilhar-me, convosco, através das minhas palavras e da minha voz.
Não foi assim tão simples. Porque não é assim tão simples.
Escrevo depois de Pina, Andrade, Pessoa, Hélder. Nasço depois da Revolução Francesa, depois do Maio de 68, e não sou, sequer, filha do 25 de Abril. Vivo depois da Maria Lamas, da Virgínia Moura, da Natália Correia. E penso: o que raio estou aqui a fazer? O que podem as minhas palavras ou a minha voz acrescentar num mundo em que parece que já tudo foi feito? Pergunto isto com o mesmo espanto com que ando espantada de existir, como nas Aventuras do João Sem Medo, do José Gomes Ferreira. E o único lugar onde sei que gostaria realmente de pertencer, talvez fosse a esse título de um livro para crianças: “aventuras de alguém sem medo”.
Pergunto-me se esse “sem medo” se podia juntar ao meu nome próprio, como há já tantos anos naturalmente se juntou ao nome próprio do rapaz protagonista da história. E fico tranquila por pensar que também o meu nome poderia ser título de livro “As Aventuras de Sara Sem Medo”, sem correr o risco que o mesmo fosse apreendido pela ASAE, ou por um Prefeito do Rio de Janeiro, e, sobretudo, sem desencadear uma guerra civil com todos os energúmenos que não entendem a importância de se alterar o género no Cartão de Cidadão aos dezasseis anos, ou o direito de uma livre escolha de uma casa de banho, afinal, o feminismo é coisa de sufragista.
Até aqui tudo parece bater certo: Eu estou bem. Está tudo bem. Eu não tenho medo. Não existe medo. E, não. Não está tudo bem. Não está tudo bem porque o medo existe. A insegurança existe. A desigualdade existe.
Não está tudo bem porque mesmo que possa ser normal um João não ter medo, posso garantir que a Carolina muda de passeio quando está numa rua sozinha com alguém a caminhar atrás dela. A Joana foi ensinada a pôr as chaves de casa entre os dedos e cerrar bem a mão quando anda sozinha à noite. A Paula finge que conversa com o pai quando apanha um taxi tarde, e faz questão que o motorista a ouça contar-lhe qual é a matrícula do carro onde vai. Todas as raparigas sabem que não podem deixar a bebida pousada no balcão. E tenho quase a certeza que já quase todas as mulheres, durante uma saída a uma discoteca, foram cumprimentar outras, totalmente desconhecidas, enquanto lhes pediam desculpa pois só queriam tentar safar-se de alguém que as estava a assediar. Sem medo?
E estou de volta aqui, a esta sala, cheia de medo de falar. Cheia de medo de usar palavras minhas, porque trago no ADN tantos séculos de silenciamento da palavra pública da mulher.
Parece que não, não é? Parece que estou a misturar tudo e a transformar um passado tão longínquo em tema de agenda. Talvez não.
Este ano dediquei-me à investigação da toponímia portuense. Desculpem-me os mais sensíveis, mas não há nada mais na ordem do dia do que as ruas que cruzamos nas nossas rotinas. As ruas perpetuam a memória das pessoas, imortalizam-nas, escrevem história, escolhem o que irá ficar recordado. Até 2017, os últimos dados a que tive acesso, o Porto tinha 2468 topónimos, desses apenas 5% são nomes de mulheres. Nessa percentagem estão incluídos substantivos femininos como “Lapa”, “Virtudes”, “Antas”. E ainda nomes de Santas. Mas Mulheres reais que dedicaram a sua vida ao ensino, à literatura, à arte, à ciência, à política, à igualdade de direitos, à luta pela liberdade? Essas são apenas 50. Vou repetir. 50. Talvez ajude a concretizar este número se pensarmos no número de ruas com nomes de homens, cujo nome começa por Dr. São 86. 86 ruas com nomes de homens cujo nome começa por Dr., e 50 mulheres no total.
Gisberta viveu no Porto, e foi brutalmente assassinada em 2006. O seu nome já foi proposto à Comissão de Toponímia Portuense em 2010, através do projecto “Viver a Rua”, mas a comissão, decidiu atribuir à rua o nome de António Nicolau d’Almeida, fundador do Futebol Clube do Porto.
Domingo vou votar.
E ainda ontem uma amiga me contava que em todas as eleições em que a avó vai votar, sai da mesa de voto e faz questão de dizer alto: votei no da mãozinha, era assim, Manel?
Domingo vou votar.
Se tudo parece um passado longínquo, é estranho pensar que o primeiro voto de uma mulher em Portugal aconteceu apenas há 108 anos. Carolina Beatriz Ângelo, todas temos um nome, e não podemos continuar a silenciá-los, apenas conseguiu o direito de voto pois era viúva, com uma filha. Tendo ido a tribunal pedir o direito de ser considerada “chefe de família”. Por forma a evitar que tal exemplo pudesse ser repetido, a lei foi alterada no ano seguinte, com a especificação de que apenas os chefes de família do sexo masculino poderiam votar.
O voto é concedido, pela primeira vez – embora com limitações – no ano de 1931, e a 26 de Dezembro de 1968 é publicada a lei que vem finalmente remover qualquer discriminação em função do sexo. Será que foi assim há tanto tempo? E será que já está mesmo tudo feito?
Em 1972 Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa editam o livro “Novas Cartas Portuguesas”, que viria a ser apreendido de seguida, dando início a um longo processo em tribunal. Escritores censurados e processos em tribunal em 1972 não são novidade para ninguém. Acontece que a estas três escritoras o processo foi julgado no tribunal dos bons costumes, onde se julgavam as prostitutas, menosprezando, ainda mais, não só o valor literário da obra, como o valor intelectual das autoras.
Prontas para tudo, aproveitaram a ida de um amigo para França para escreverem três cartas: uma a Marguerite Duras, outra a Simone de Beauvoir e outra a Christiane Rochefort, contando o que se passava.
A Simone de Beauvoir tinha um grande grupo de feministas ligadas a ela, e ela fez duas enormes manifestações, na rua, ao fim da tarde, a atravessar Paris, com escritores, actores, todos atrás, até à embaixada portuguesa, com velas na mão. O caso das Novas Cartas Portuguesas vai ao primeiro encontro internacional de mulheres, e pela primeira vez, e única até hoje, foi assinado um acordo em que todas as mulheres na parte ocidental do mundo, iam dar apoio às mulheres portuguesas, às Três Marias. O caso teve impacto no mundo inteiro, e ainda hoje é um dos livros portugueses mais traduzidos.
Em Portugal, continuamos a ter medo dele. Porque temos medo de mulheres sem medo.
O desafio que me lançaram passava por escrever um texto para esta noite. Partilhar-me, convosco, através das minhas palavras e da minha voz. Decidi dar a minha voz a quem realmente escreveu sem medo, dando luz a quem vivia no medo.
Abro o livro para escolher um texto. São 8h30 da manhã desta sexta feira, e ouço no noticiário que esta madruga foi assassinada mais uma mulher vítima de violência doméstica. Somam-se 22 mulheres desde o início do ano.
Que medo ainda encontrar neste livro o meu manual de sobrevivência.
(de seguida lê-se “Monólogo de uma mulher chamada Maria, com a sua patroa”, em Novas Cartas Portuguesas)